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segunda-feira, 24 de maio de 2010

Revelando a sujeição: rupturas e descontinuidades

O sociólogo e filósofo francês Michel Foucault (1926-1984) propôs em sua obra uma genealogia ou reconstituição do que “mais profundo existe numa cultura”. A perspectiva analítica baseada na arqueologia dos saberes e/ou na genealogia social pretende desvendar a constituição das micro-estruturas internalizadas na mente dos indivíduos transformando-os em sujeitos de corpos dóceis. Neste sentido, o objetivo de Foucault é muito mais o de “revelar o invisível”, demonstrando o quanto os homens estão submetidos às estruturas de controle provenientes do social, do que de encontrar uma saída para elas. Pelo contrário, durante toda a sua obra, Foucault demonstra-se pessimista quanto à possibilidade de emancipação humana, mesmo que no final de sua vida tenha quase dado uma guinada neste sentido, mas acabou impedido por sua morte em 1984. Talvez sua obra mais conhecida, Vigiar e Punir (1975) é um amplo estudo sobre a disciplina na sociedade moderna que seria “a técnica de produção de corpos dóceis”. Mas essa genealogia da disciplina vinha sendo observada em suas obras anteriores, abordando sempre tal perspectiva de pontos de vista, ou campos, distintos. O “silêncio imposto ao louco” foi evidenciado na visão médica em Nascimento da Clínica (1963), nas ciências humanas em As Palavras e as Coisas (1966), no saber em geral em A Arqueologia do Saber (1969). A abordagem histórica de Vigiar e Punir revela como as estruturas disciplinares são constituídas e reformuladas durante os séculos. Foucault analisou os processos disciplinares empregados nas prisões, considerando-os exemplos da imposição, às pessoas, e padrões “normais” de conduta. A partir desse trabalho, explicitou-se a noção de que as formas de pensamento são também relações de poder, que implicam a coerção e imposição. Assim, mesmo que seja possível lutar contra a dominação representada por certos padrões de pensamento e comportamento, afinal se tem conhecimentos sobre eles, seria “impossível” escapar completamente a todas e quaisquer relações de poder. A tese central de Foucault é a de que, na modernidade, a disciplina fabrica os indivíduos sempre pautada numa correlação de poderes. A disciplina eleva seu poder aos detalhes da existência, sendo onipresente e onisciente. O poder funciona de forma micro-estrutural, está presente no interior dos indivíduos. A idealização de uma sociedade perfeita contava com a coerção individual e coletiva por meio dos militares e com juristas construindo e reconstruindo o corpo social. Para a correta disciplina seria preciso um bom adestramento, que interliga as forças multiplicando-as. A disciplina fabrica o indivíduo, para isso é preciso: o olhar hierárquico (tecnologias dos óculos, lentes, luzes e a arquitetura que permitem visualizar / vigiar / controlar); a sanção normalizadora (modelo reduzido de tribunal, conduzindo à homogeneidade); e o exame (combinação de técnicas hierárquicas vigilantes e sanções normalizadoras). O panóptico de Bentham aparece como ícone desta composição. O panóptico se constitui a partir de uma construção periférica em anel, em que no centro há uma torre com janelas que permite a visão das celas, mas que impossibilita sua própria visão por parte dos encarcerados. Apenas uma pessoa pode vigiar várias, então o espaço pode ser repartido individualmente, evitando as massas, pois os muros laterais impedem a comunicação entre os detentos. Contudo, para Foucault, o efeito mais importante refere-se ao sentimento do detento de estar sendo vigiado constantemente, o que assegura o funcionamento do poder automaticamente. O poder é visível e inverificável, sabe-se de sua existência, mas não pode comprová-la. Não é mais necessário impor penas e sanções aos vigiados para obter bom comportamento: basta o “temor” de ter todos seus atos vistos e analisados “pelo poder”. Genealogicamente, o panóptico engendra uma observação que se depreende da questão apenas da vigilância para alcançar a posição de formação de saberes: a observação do escolar, do operário, do louco, do enfermo leva a percepção de sintomas e comportamentos que suscitam questões “aos observadores”. Tanto na escola, quanto no hospital ou na linha de produção se estabelece tal poder como função: aumenta a produção, reforma a moral, espalha a instrução. A generalização da disciplina para todas as células sociais, devido à facilidade de transposição de seus arranjos, é o grande legado do panoptismo. Em sua nova face, a disciplina busca aumentar a utilidade dos indivíduos, fazendo crescer suas aptidões, seus rendimentos, acelerando a economia, além de moralizar cada vez mais as condutas, que se revestem de um mecanicismo imposto pela multiplicidade de olhos censores que normatizam a conduta. Com uma simples idéia arquitetônica o panóptico é capaz de reformar a moral, preservar a saúde e difundir a instrução. De fato, em sua obra em geral, Foucault está falando sobre a sujeição dos indivíduos que estão em sociedade. Para o autor, o indivíduo como sujeito é um indivíduo “sujeitado à determinadas condições existenciais”. Mesmo que Foucault demonstre que haja manifestas transformações na sociedade no decorrer da história, com rupturas e descontinuidades nos instrumentos de controle e poder, a sujeição humana sempre ocorre e com cada vez mais intensidade, revelando-se até mesmo como socialmente “benéfica” para a humanidade, ou seja, como cultura, como valores, como normalizações. Neste último aspecto, reside a grande força dos instrumentos de controle micro-sociais internalizados pelos indivíduos. Micro elementos de controle vão se formando e ao serem internalizados pelos indivíduos são cristalizados. A sociedade revelada por Foucault não abre espaço para a autonomia ou independência do indivíduo frente ao social: a individuação produzida pelo social geraria necessariamente mais controle. Para o autor, contra-poderes residiriam especialmente em estratégias em nome da vida e que passam pela sexualização, ou seja, num re-encontro do corpo com seus prazeres uma vez que a sociedade regula a vida e disciplina os corpos. Neste sentido, Foucault não está preocupado em conectar os fatos a uma ordem mais ampla ou sistêmica o que o leva a romper com a idéia de que haveria um eixo que orienta a história, como o motor da história protelado pelas correntes marxistas.

2 comentários:

  1. na visão de Foucalt, como definiria essa guerra que está acontecendo no rio?

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  2. O termo "guerra" me parece mais uma expressão midiática, que está sendo muito utilizada pela imprensa. Evidentemente que os próprios governantes têm se aproveitado do alarde proposto pela imprensa para se auto-promoverem. A parte disso, acredito que Foucault entenderia o confronto como uma mobilização de poderes, tanto por parte dos grupos "marginais" quanto por parte do Estado. Foucault está mais preocupado com micropoderes internalizados pelos indivíduos, que docilizam os sujeitos, ou seja, controlam suas atitudes, dominam seu comportamento, orientam seus sentimentos, tornam seus corpos dóceis. As transferências de líderes presos do tráfico carioca provocaram uma reação por parte dos seus seguidores, que buscaram cristalizar seu poder por meio de ataques à sociedade (incendiando automóveis), que geraram certo desconforto à população. O Estado contra-atacou, demonstrando seu poder com a tomada dos morros. Se os ataques praticados pelos traficantes geraram um sentimento de insegurança, a rápida tomada dos morros geraram um contra-sentimento de segurança. A sensação de medo produzida inicialmente se recobre de proteção quando a ação do Estado colocou os traficantes em fuga. Parcialmente houve uma retomada da confiança nas intituições. Se o poder demonstrando pelos traficantes gerou temor, o poder demonstrado pelo Estado reforçou o sentimento de vigilância a que todos estão submetidos, inclusive os traficantes.

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