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sábado, 31 de julho de 2010

O processo civilizador

Em o processo civilizador, Norbert Elias procura demonstrar nos seus exemplos uma mudança no padrão de comportamento das pessoas, expondo como se dá o longo processo civilizador no decorrer da história. Descreve os comportamentos diferenciados entre corte e burguesia (França e Alemanha), onde a aristocracia refina hábitos que a burguesia se apóia e modifica, até o século XVIII a ascensão a corte se constituía na mimetização dos comportamentos aristocráticos. O processo de construção de uma subjetividade surgiu nesse interim - precisamente marcado pela etiqueta - onde havia uma preocupação externa que com o tempo é internalizada. A cortesia - tradição da nobreza - e a civilidade aparecem como comportamentos sociais que são aceitáveis, e que serão virtudes relacionadas a Deus e, em uma concepção de relação com o outro, a cortesia era pois, a limitação dos comportamentos e hábitos - a civilidade permitia a consciência da individualidade e era a marca da descência e dos honrados. A partir do século XIX houve uma expansão das regras de civilização, onde os constrangimentos e a vergonha eram usdaos para restringir os comportamentos, por exemplo, o hábito de escarrar onde tal conduta foi se modificando e se desenvolvendo ao longo do tempo. A série de transcrições sobre o hábito de escarrar demonstra que o comportamento mudou em uma dada direção, o que seria: “um movimento do tipo progresso”(pág. 58) ,ou seja, os europeus estranharam quando se depararam com a cultura oriental e africana pois, há quatrocentos anos atrás os europeus eram assim. O autor identifica tabus e restrições de vários tipos que acompanharam a expectoração do catarro e distingue isso nas sociedades primitivas e civilizadas - a diferença seria no fato de que as sociedades primitivas são sempre mantidas por controles externos (medos, mitos), ao passo que nas sociedades civilizadas esses controles são transformados quase que completamente em controles internos. Tem-se a idéia que, além de escarrar com frequência ser ruim para a saúde, é também indelicado e repugnante. Os tabus e o nojo aumentaram antes que as pessoas tivessem uma idéia clara de transmissão de certas doenças pelo escarro - o que agrava esses sentimentos e as restrições é a transformação das relações e dependências humanas. A motivação é fundada na consideração social, antes da motivação por conhecimento científico, e o que aconteceu foi a crescente compulsão para controlar-se. A modificação do hábito de escarrar e a eliminação quase que completa de sua necessidade é um exemplo da maleabilidade psíquica. Elias nmostra que outras necessidades não são tão substituíveis ou maleáveis como no caso do hábito de escavar. Isso coloca a questão do limite da transformabilidade da personalidade humana, ou seja, o grau em que a vida e o comportamento humano podem ser moldados por processos históricos - isto mostra como processos históricos e naturais se influenciam mútua e inseparavelmente.
A formação dos sentimentos de nojo e vergonha, e os avanços no patamar da delicadeza são simultaneamente processos naturais e históricos (pág. 162). Os povos “primitivos” e os “civilizados” verificou-se as mesmas proibições e restrições (tabus), juntamente com equivalentes psíquicos, socialmente induzidos (pág. 162). Nas funções psíquicas do homem os processos naturais e históricos trabalham indissoluvelmente juntos.

Comentários com base no texto:
Elias, Norbert. O processo civilizador. Rio de Janeiro, Jorge Zahar editor, v.2, 1990, pp. 109 - 168.

A emergência do Estado para Bourdieu

Para Bourdieu o Estado é um “ser determinado” que reinvindica com sucesso o monopólio do uso legítimo da violência física e simbólica em um território determinado e sobre o conjunto da população correspondente. Essa posição do estado em relação a violência simbólica se deve a sua objetividade, ou seja, o uso das estruturas e dos mecanismos específicos para este fim, e a sua subjetividade, que faz sob a forma de estruturas mentais, de esquemas de percepção e de pensamento, resultado de um processo que institui, ao mesmo tempo, nas estruturas sociais, as estruturas mentais formadas numa série de atos de instituição que fazem com que essas formas apareçam com aparência natural para o indivíduo. O Estado é resultado de um processo de concentração do capital de força física ou coerção, capital econômico e capital simbólico ou cultural, detentor de um “metacapital” com poder sobre os outros tipos de capital e sobre seus detentores. A concentração de diferentes tipos de capital leva a emergência de um capital específico (propriamente estatal) que permite ao Estado exercer um poder sobre os diversos campos e sobre os diferentes tipos específicos de capital. Desta forma, a construção do Estado está em pé de igualdade com a construção do campo do poder - entendido este como o espaço no interior do qual os detentores dos diferentes tipos de capital lutam individualmente pelo poder sobre o Estado, de forma a ter a hegemonia do capital estatal, o qual lhes assegurará o poder sobre os diferentes tipos de capital e sua reprodução por meio das instituições escolares. O Estado impõe uma lógica de pensamento que define uma espécie de razão definitiva se apresentando com uma razão universal, única e certa. Ele impõe estruturas de percepção do mundo através de categorias ou classificações sociais. Por concentrar o capital simbólico, o Estado impõem estruturas cognitivas, caracterizando uma violência simbólica no Estado.

Bourdieu propõe a concepção de agente para superar a noção de sujeito

Numa etapa anterior ao estruturalismo, o sujeito era visto como atuante dentro do sistema interativo e cognitivo existente. A história era uma sucessão de acontecimentos afim de dar sentido a uma determinada realidade, ou seja, numa contextualização do indivíduo, numa concepção diacrônica. O estruturalismo rompe com o conceito do sujeito, fazendo desaparecer o agente histórico. É a negação do sujeito como atuante na estrutura, pois para os estruturalistas, a própria estrutura desempenha esse papel. A história não é mais movida por ondas, ela é movida por estruturas. No estruturalismo não se constroem mitos, mas sim ciência. A análise sincrônica estruturalista acaba abolindo a história em pró da estrutura. Para transpor o estruturalismo, Bourdieu faz uso do conceito de agente. Ele rompe com a negação do sujeito inserindo a idéia de que o homem deve ser entendido com agente. Na filosofia do sujeito, este é concebido como um ser estático, fora do jogo de interesses do campo. A superação de Bourdieu a esta conceituação da filosofia do sujeito dá-se na medida em indivíduos ou coletividades, pessoas, classes, ou instituições, disputam entre si alguma coisa de interesse comum. Bourdieu trabalha com agentes e não com sujeitos, já que agente é o ser que age e luta dentro do campo de interesses. No pós-estruturalismo surge a concepção da história estrutural, onde quem muda as estruturas somos nós mesmos, o agente social, através do embate interno e externo dos campos. Para Bourdieu o conceito de interesse é central à compreensão da realidade. Bourdieu propõe uma análise relacional, dinâmica, e não estática da filosofia do sujeito. Bourdieu substitui a luta de classes, motor da história em Marx, pala luta de classificações, motor da lógica do espaço social. O processo dialético ocorre na sincronia e na invariância das estratificações dos diferentes campos e do jogo de colocações que eles permitem.

História e trajetória de vida

A história de vida é uma narração biográfica de acontecimentos que um ator social realiza para justificar suas ações e condições presentes. Em narrativas desse tipo, os atores expõem apenas o que eles consideram relevante destacar. Não existe uma cronologia linear, mas um encadeamento de fatos marcantes, feito através de um processo de seleção de eventos a qual o indivíduo atribui sentido, justificados entre si através de relações inteligíveis.

Já para Bourdieu, esses fatos importantes que são relacionados para descrever uma história de vida dependem da posição do agente num campo. Por exemplo, o que um indivíduo conta aos 50 anos sobre os primeiros 20 anos de sua vida é diferente do que conta aos 20 anos sobre sua vida.

Desta forma Bourdieu vai transpor o conceito de história de vida introduzindo o conceito de trajetória de vida, que está articulado aos coceitos de campo e de hábitus. Na sua concepção, a trajetória de vida é linear, cronologicamente ordenada por eventos sucessivos, ou seja, em posições que foram sucessivamente ocupadas pelo agente num campo. Por consequência, a narrativa do agente será relacionalmente determinada dentro do campo, e sustentada em sua história passada, acumulada, espécie de “script”, que orienta o perfil e a ação posterior da trajetória do indivíduo, ou seja, seu habitus.

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Perfil social dos gamers

Algumas informações interessantes sobre o perfil dos jogaderes de videogame. Clicar na imagem para ampliar.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

Giddens e o Estado de bem-estar social

O Welfare State (Estado de bem-estar social), também conhecido como Estado-providência, é um tipo de organização política e econômica que coloca o Estado-nação como agente da promoção social e organizador da economia. Nesta orientação, o Estado é o agente regulamentador do ambiente social, político e econômico do país em parceria com sindicatos e empresas privadas, em níveis diferentes, de acordo com a nação em questão. Cabe ao Estado do bem-estar social garantir serviços públicos e proteção à população. Os Estados de bem-estar social desenvolveram-se principalmente na Europa, onde seus princípios foram defendidos pela social-democracia, tendo sido implementado com maior intensidade nos Estados Escandinavos tais como a Suécia, a Dinamarca e a Noruega e a Finlandia, sob a orientação do economista Karl Gunnar Myrdal. Esta forma de organização político-social, que se desenvolveu após a Grande Depressão e se consolidou com a ampliação do conceito de cidadania, com o fim dos governos totalitários da Europa Ocidental, quando houve uma hegemonia dos governos sociais-democratas e, secundariamente, das correntes euro-comunistas, com base na concepção de que existem direitos sociais indissociáveis à existência de qualquer cidadão. Pelos princípios do Estado de bem-estar social, todo o indivíduo teria o direito, desde seu nascimento até sua morte, a um conjunto de bens e serviços que deveriam ter seu fornecimento garantido seja diretamente através do Estado ou indiretamente, mediante seu poder de regulamentação sobre a sociedade civil. Esses direitos incluiriam a educação em todos os níveis, a assistência médica gratuita e universal, o auxílio ao desempregado, a garantia de uma renda mínima, recursos adicionais para a criação dos filhos, pensão.

Inicialmente é importante destacar que Giddens vai trabalhar conceitos relacionados ao Welfare State, seguindo uma linha de pensamento que o próprio autor afirma ser alternativa. Assunto central dos trabalhos de Giddens é aquela que o autor chama Sociedade Pós-tradicional. Giddens parte sua análise do pensamento da esquerda que afirma a proteção do Welfare State essencial para o significado da sociedade civilizada. Os doentes, os velhos, os necessitados, não podem estar abandonados e o Welfare State propiciaria oportunidades destas pessoas de levar uma vida social aceitável pela ação do governo. A noção do socialismo reformista pressupões que o Estado organiza a previdência, intervindo na Economia a fim de tornar a ordem social mais equitativa. Por isso, Giddens diz que o Previdencial parece limitar o Estado. Giddens vai ver então o Estado Moderno sendo definido por essa intervenção que poderia fazer parte de sua forma administrativa. O pauperismo aparece então como elemento fundamental na constituição do Welfare State, sendo circunstância necessária para a instalação da sociedade civil enquanto tal. Giddens destaca que não se deve buscar as origens do Welfare State nas tentativas de reprimir o pauperismo, mas sim no desenvolvimento que Claus Offe chamou de proletarização ativa contra proletarização passiva. A intervenção do Estado foi fundamental para ligar essas duas formas e primordial no processo de transformação do Estado administrativo em Welfare State. Mas essa não é uma questão relacionada com uma compatibilidade funcional entre o Estado e o Capitalismo. Foi a percepção de que a política social era necessária para proteger os indivíduos quando fora do mercado, já que no mundo industrial as fontes tradicionais de apoio sucumbiram. Em menor medida, o Welfare State é resultado dos movimentos dos trabalhadores por melhores condições.

Surgem então como fontes estruturais do Welfare State (1) as instituições previdenciais: trabalho assalariado com um papel central e definidor; (2) o Estado-nação: noção de solidariedade nacional, o Estado sendo visto pelo povo como um “pai”; e (3) a administração de risco: a previdência é um seguro social, uma maneira de lidar com acasos previsíveis. O seguro social aqui não refletia as percepções de injustiça, mas a ascensão da idéia de que a vida social e econômica podia ser humanamente controlada.

Após a guerra o Welfare State se consolidou com base no símbolo do Estado-nação, resolvendo o problema social e assegurando a eficiência econômica. Os novos problemas agora apareciam em três temáticas: trabalho, solidariedade e a administração de risco (vida social e econômica cada vez mais instável, propensa a mudanças aceleradas).

O Welfare State ampliou a equação do trabalho com o emprego assalariado e, posteriormente, com a entrada da mulher no mercado de trabalho. O sistema taylorista assimilado pelo Estado constituiu o Welfare State como um estado nacional integrado no qual o corporativismo ampliava a solidariedade social. Hoje o modelo do trabalhador permanente e protegido passa a ser atacado por outros modos concorrentes de organização do trabalho: aumento do trabalho de tempo parcial, interrupções “voluntárias”de carreira, auto-emprego e trabalho domiciliar. Essa nova situação, fruto do processo de globalização e da mundialização da economia tem, para Giddens, relação com o declínio do Welfare State e o caráter inconstante da ordem global. Mas tal evidência parece encoberto pelos sucessos políticos do neoliberalismo que vê um Welfare State sobrecarregado e o ataca em nome da libertação da empresa competitiva, responsável pelas novas relações sociais. Mas há um ponto paradoxal apontado por Giddens quando os políticos da Nova Direita reivindicam um estado forte na arena internacional.

Uma das teses sobre as pressões ao Welfare State é o argumento de que ele foi enfraquecido por seus próprios sucessos. É quando o clima econômico se torna adverso, quando aqueles que mais se beneficiaram passam a proteger a posição que alcançaram contra grupos em condições mais desfavoráveis. Conseqüências da nova sociedade global: O Welfare State tem sido organizado principalmente em termos de risco externo. As provisões de seguridade social buscam essencialmente dar cobertura a todas aquelas circunstâncias nas quais os indivíduos encontram-se incapazes de alcançar um determinado nível básico de renda e de recursos. Assim, os problemas do Welfare State têm sido vistos em termos fiscais. Para G, as tentativas de redistribuição de riqueza ou renda por meios de medidas fiscais e sistemas previdencias ortodoxos não funcionaram de modo geral. Isso é válido dentro de sistemas previdenciais dos Welfare State de países industrializados e entre as nações ricas e empobrecidas do mundo.

Giddens diz que as condições previdenciais são fortemente afetadas por influências globalizadoras, então não se pode mais falar dos Welfare State do Ocidente como se eles pudessem prosperar independentemente daquilo que acontece no resto do mundo. Dentro destes países veríamos também um crescente afastamento das áreas de privilégio em relação aos grupos de subclasses empobrecidos e criminalizados.

Qual seria então um desenvolvimento alternativo?

Não seria o socialismo enquanto economias centralmente controladas que optariam por não tomar parte na ordem capitalista global; como ocorreu no mundo industrializado,... tal solução, diz Giddens, comprovadamente apenas piorou a situação que supostamente deveria corrigir.

Comentários com base no texto:
GIDDENS, Anthony. Para Além da Esquerda e da Direita. São Paulo: Unesp, 1996. Capítulos 5, 6 e 7 (p. 153-224)

domingo, 25 de julho de 2010

Thompson: Tempo, ética social e dominação

Alguns autores relacionam o nascimento das fábricas com a necessidade da instauração de uma nova ética. Thompson (1998) realiza uma revisão historiográfica tratando sobre as mudanças importantes na percepção do tempo que ocorrerem com a introdução do relógio e da eletricidade na vida cotidiana da sociedade ocidental. A partir do contraste que se estabelece entre o “tempo da natureza” e o “tempo do relógio”, no processo de formação da sociedade capitalista européia e declínio do sistema feudal, o autor identifica mudanças nos sentidos, nos hábitos, no conhecimento, no trabalho e na economia. Para Thompson, as mudanças na noção de tempo provocaram mudanças na organização e na orientação social. A noção de tempo adota novo valor, adotado desde as Igrejas até as fábricas, toda a organização social passa a ser controlada pelo tempo e toda a ação social converte-se em “tempo é dinheiro”. Seria como se os indivíduos tivessem um “relógio moral interno”, um valor internalizado fundamentado na concepção do tempo, por isso situado dentre de uma ética social que se difunde nas fábricas, escolas, na vida das pessoas: formaram-se novos hábitos de trabalho e impôs-se uma nova disciplina de tempo.

“A primeira geração de trabalhadores nas fábricas aprendeu com seus mestres a importância do tempo; a segunda geração formou os seus comitês em prol de menos tempo de trabalho no movimento pela jornada de dez horas; a terceira geração fez greve pelas horas extras ou pelo pagamento de um percentual adicional (1,5%) pelas horas trabalhadas fora da hora do expediente. Eles tinham aceito as categorias de seus empregadores e aprendido a revidar os golpes dentro desses preceitos. Haviam aprendido muito bem a sua lição, a de que tempo é dinheiro” (Thompson, 1998: p. 294).

Trata-se de abordar a questão da dominação social desde a perspectiva de como os atores sociais passam a internalizar fenômenos correlatos ao avanço do capitalismo e como essa internalização passa a orientar o sentido de suas ações.

Comentários com base no texto:
THOMPSON, Edward Palmer. Tempo, disciplina de trabalho e capitalismo industrial. IN: Costumes em comum. São Paulo: Companhia das letras, 1998. Capítulo 6. Texto original de 1979.

Sigmund Freud: indivíduo e civilização

Na abordagem psicanalítica fundada por Sigmund Freud, o indivíduo se constitui como um ente à parte do social e que compõe o social. Freud refere-se aos aspectos que compõem um estado instintivo humano e que acabam por se tornar inibido em pró da convivência comunitária. A inibição destes aspectos, que são instintivos, consiste numa privação de características que são inatas aos homens, e, esta própria privação, acaba por consistir em determinados descontentamentos. Neste sentido, os homens em civilização – ou civilizados – demonstram-se descontentes na busca de sua felicidade, pois seus instintos não são prontamente atendidos em sociedade. No seu O mal-estar da civilização, Freud elabora uma discussão filosófico-social a partir de sua teoria psicanalítica. O autor desenvolve a idéia de que, em sociedade, não há avanço sem perdas. A idéia central que desenvolve nesta obra é a de que a civilização é inimiga da satisfação dos instintos. A sociedade modifica a natureza individual, constitui o homem como membro da comunidade, tornando-o indivíduo no social. Essa civilização exige sacrifícios, entre eles o da satisfação sexual e o da agressão. Tais sacrifícios são fontes de sofrimento, que criam dificuldades de relacionamentos, com o meio ambiente e a sociedade. Consiste como um paradoxo humano a idéia de que por ter criado uma sociedade civilizada, o homem precisou reprimir seus instintos violentos. Para Freud, esses impulsos que não podem ser satisfeitos acabam produzindo neuroses e infelicidade. Mas deve-se ter claro que para o autor a memória tem papel central. Tudo, então, seria armazenado na mente, de modo que não há um esquecimento dos impulsos, mas apenas repressão. Por segurança os homens são capazes de se submeterem à organização social. Em contrapartida, precisam abdicar da gratificação indiscriminada produzida pela agressividade que lhes é própria. “Se a civilização impõe sacrifícios tão grandes, não apenas à sexualidade do homem, mas também à sua agressividade, podemos compreender melhor porque lhe é difícil ser feliz nessa civilização. Na realidade, o homem primitivo se achava em situação melhor, sem conhecer restrições de instintos. Em contrapartida, suas perspectivas de desfrutar dessa felicidade, por qualquer período de tempo, eram muito tênues. O homem civilizado trocou uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança. Não devemos esquecer, contudo, que na família primeva apenas o chefe desfrutava da liberdade instintiva; o resto vivia em opressão servil. Naquele período primitivo da civilização, o contraste entre uma minoria que gozava das vantagens da civilização e uma minoria privada dessas vantagens era, portanto, levado a seus extremos. Quanto aos povos primitivos que ainda hoje existem, pesquisas cuidadosas mostraram que sua vida instintiva não é, de maneira alguma, passível de ser invejada por causa de sua liberdade. Está sujeita a restrições de outra espécie, talvez mais severas do que aquelas que dizem respeito ao homem moderno” (p. 169-170). Essas renúncias costumam ser impostas em parte pela autoridade externa. E em parte pela ação da autoridade externa introjetada no sujeito, o dito superego, perpetuação da figura do pai e dos seus sucedâneos no mundo adulto. Com cada sacrifício pulsional, a culpa aumenta, em vez de diminuir. Este seria o descontentamento dos indivíduos, o seu mal-estar (parafraseando o título da obra): a frustração e a culpa. O ressentimento contra a civilização é uma conseqüência lógica desse mal-estar. E porque é tão difícil para o homem ser feliz, se pergunta Freud? Por que a civilização gera descontentes? Porque os homens civilizados estão privados da satisfação de parte de sua personalidade, de parte de sua natureza, fundada nos instintos. A idéia de restrição calcada por Freud à civilização toma evidência fatalistica. “A liberdade do indivíduo não constitui um dom da civilização. (...) O desenvolvimento da civilização impõe restrições a ela, e a justiça exige que ninguém fuja a essas restrições”. (p. 155-156). Ainda afirma o autor que “... a civilização é construída sobre uma renúncia ao instinto, o quanto ela pressupõe exatamente a não-satisfação de instintos poderosos. Essa ‘frustração cultural’ domina o grande campo dos relacionamentos sociais entre os seres humanos... é a causa da hostilidade contra a qual todas as civilizações têm de lutar... como pode ser possível privar de satisfação um instinto... se a perda não for economicamente compensada, pode-se ficar certo de que sérios distúrbios decorrerão disso.” (p. 157). A civilização depende de relacionamento entre um considerável número de indivíduos. Ela visa a unir entre si os membros da comunidade também de maneira libidinal e, para tanto, emprega todos os meios, favorece todos os caminhos pelos quais as identificações fortes possam ser estabelecidas entre os membros da comunidade e, na mais ampla escala, convoca a libido inibida em sua finalidade, de modo a fortalecer o vínculo comunal através das relações de amizade. Para que esses objetivos sejam realizados, faz-se inevitável uma restrição à vida sexual. A pista pode ser fornecida por exigência ideal da sociedade civilizada, tal como relata Freud: ‘Amarás a teu próximo como a ti mesmo.’ Meu amor é valorizado por todos os meus como um sinal de minha preferência por eles, e seria injusto para com eles, colocar um estranho no mesmo plano em que eles estão. (164-165). Os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo. (O homem é o lobo do homem) Quem, em face de toda sua experiência da vida e da história, terá a coragem de discutir essa asserção? Via de regra, essa cruel agressividade espera por alguma provocação, ou se coloca a serviço de algum outro intuito, cujo objetivo também poderia ter sido alcançado por medidas mais brandas. (p. 166-167). A existência da inclinação para a agressão, que podemos detectar em nós mesmos e supor com justiça que ela está presente nos outros, constitui o fator que perturba nossos relacionamentos com o nosso próximo e força a civilização a um tão elevado dispêndio [de energia]. Em conseqüência dessa mútua hostilidade primária dos seres humanos, a sociedade civilizada se vê permanente ameaçada de desintegração. O interesse pelo trabalho em comum não a manteria unida; as paixões instintivas são mais fortes que os interesses razoáveis. A civilização tem de utilizar esforços supremos a fim de estabelecer limites para os instintos agressivos do homem e manter suas manifestações sob o controle por formações psíquicas reativas. Daí, portanto, o emprego de métodos destinados a incitar as pessoas a identificação e relacionamentos amorosos inibidos em sua finalidade, daí a restrição à vida sexual e daí, também, o mandamento ideal de amar ao próximo como a si mesmo, mandamento que é realmente justificado pelo fato de nada mais ir tão fortemente contra a natureza original do homem. A despeito de todos os esforços, esses empenhos da civilização até hoje não conseguiram muito. Espera-se impedir os excessos mais grosseiros da violência brutal por si mesma, supondo-se o direito de usar a violência contra os criminosos; no entanto, a lei não é capaz de deitar a mão sobre as manifestações mais cautelosas e refinadas da agressividade humana. Chega a hora em que cada um de nós tem de abandonar, como sendo ilusões, as esperanças que, na juventude, depositou em seus semelhantes, e aprende quanta dificuldade e sofrimento foram acrescentados à sua vida pela má vontade deles. Ao mesmo tempo, seria injusto censurar a civilização por tentar eliminar da atividade humana a luta e a competição. Elas são indubitavelmente indispensáveis. (p. 167-168). Não é fácil aos homens abandonar a satisfação dessa inclinação para a agressão. Sem ela, eles não se sentem confortáveis. Se trata de uma satisfação conveniente e relativamente inócua da inclinação para a agressão, através da qual a coesão entre os membros da comunidade é tornada mais fácil. (p.169). Freud faz referência que a civilização resiste a qualquer tentativa de reforma em pró da satisfação de instintos. Todavia, deixa aberta a idéia de que a psicoterapia pode ajudar nesse processo. “Quando, com toda justiça, consideramos falho o presente estado de nossa civilização; quando, com crítica impiedosa, tentamos pôr à mostra as raízes de sua imperfeição, estamos indubitavelmente exercendo um direito justo, e não nos mostrando inimigos da civilização. Podemos esperar efetuar, gradativamente, em nossa civilização alterações tais, que satisfaçam melhor nossas necessidades e escapam a nossas críticas. Mas talvez possamos também nos familiarizar com a idéia de existirem dificuldades, ligadas à natureza da civilização, que não se submeterão a qualquer tentativa de reforma”. (p. 170). Isso indica que em Freud se encontra um modelo de sistema filosófico em que a psicologia é integrada às ciências sociais, o que consiste num certo desafio à sociedade. Nesta obra, Freud parece acreditar que o destino humano poderia melhorar através de uma análise universal.

Comentário analítico com base no texto:
FREUD, Sigmund. Mal-Estar da civilização. Rio de Janeiro: Abril, 1978. Coleção “Os pensadores”. (pp. 133-194). Original de 1929, 1930.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Honneth e a luta pelo reconhecimento

O filósofo e sociólogo alemão Axel Honneth (1949 – ...) retoma a concepção de “luta por reconhecimento” do jovem Hegel para dar suporte a sua abordagem sobre a formação da identidade como um processo intersubjetivo entre parceiros de interação. Na obra Luta por reconhecimento. A gramática moral dos conflitos sociais, Honneth propõe um modelo teórico de análise da identidade – ou do que Mead chamaria de self (!?) – fundada em duas linhas de pensamento. Por um lado, retoma – como já foi dito – a concepção de luta por reconhecimento de Hegel. Por outro lado, explora a teoria da socialização desenvolvida por George Herbert Mead. A combinação dessas concepções implementa sua teorização. Nesta ficha, trato especificamente de pontos sobre o primeiro aspecto.

Honneth é professor do Instituto de Filosofia da Universidade de Frankfurt e Diretor do Instituto de Pesquisa Social em Frankfurt, tendo sucedido a Jürgen Habermas em seu posto na Universidade referida. Herdeiro, portanto, da Teoria Crítica fundada por Horkheimer e Adorno, Honneth seguiu a proposta de Habermas ao sugerir uma teoria como solução aos impasses de seus antecessores – no caso de Honneth especialmente Habermas, de quem foi assistente – ao mesmo tempo em que neles buscou os elementos que lhe permitiram traçar novo rumo à teoria social critica. Procura, portanto, com sua abordagem, superar o que chama de “déficit sociológico” da teoria crítica. Ou seja, para Honneth, vigora da tradição da teoria critica uma concepção de sociedade posta entre estruturas econômicas determinantes e imperativas e a socialização do indivíduo, que não considera a ação social como mediador necessário. Assim, entende Honneth que o conflito social deva ser o objeto centra da teoria crítica, sendo a base da interação o conflito e a sua gramática a luta por reconhecimento.

Na Parte I do livro, Honneth faz um esboço sobre a teoria abandonada por Hegel sobre luta do reconhecimento em detrimento da fenomenologia do espírito, tendo em vista atualizar tal concepção e lhe fornecer operacionalidade. Todavia, o que Honneth discute na Parte I aqui examinada é a concepção de Hegel. Tanto é assim, que o autor intitula a primeira parte da obra como “a idéia original de Hegel”. O termo “original” subentende que Honneth vai se apropriar da concepção de Hegel, mas não simplesmente a reproduzindo, mas explorando uma concepção que é “original” de Hegel, pois Hegel implementa a constituição do social interdependentemente à constituição do individual. Vejamos alguns pontos explorados por Honneth.

Honneth evidencia o processo fenomenológico e teleológico esboçado por Hegel. A concepção de Hegel pretende reconstruir o processo de formação ética do gênero humano como um processo que passa por etapas de um conflito que realizam um potencial moral inscrito estruturalmente nas relações comunicativas entre os sujeitos. Aqui é evidente o pressuposto idealista de Hegel de que o processo conflituoso a ser investigado é determinado por uma marcha objetiva da razão que ruma para a natureza comunitária do homem. A novidade esboçada por Hegel, e o aspecto que chama a atenção de Honneth na obra do filósofo, é exatamente esse centralidade do conflito na constituição de uma moral universal presente na sociedade.

Honneth destaca na concepção hegeliana a luta dos sujeitos pelo reconhecimento recíproco de sua identidade que provocaria uma pressão intra-social (de dentro do social) para o estabelecimento prático e político de instituições garantidoras da liberdade. Isso significa a pretensão dos indivíduos ao reconhecimento intersubjetivo de sua identidade. Essa pretensão é inerente à vida social desde o começo na qualidade de uma tensão moral que volta a impelir para além da respectiva medida institucionalizada de progresso social o que conduz a um estado de liberdade comunicativamente vivida. (Ver p. 29-30) Hegel entenderia que existe um processo de luta por reconhecimento no âmbito dos indivíduos que fundam uma moral social que permite implementar o social como uma esfera que permite a individualização dos indivíduos. É como se Hegel apresentasse uma concepção da constituição dos fenômenos sociais de modo contrário ao que mais tarde será esboçado por Durkheim. Ou seja, Hegel explora a concepção de um social comunitário a partir da ação dos sujeitos que se expressam num processo fenomenológico que passa por etapas, e não uma constituição desses mecanismos que permitem a individualização a partir das estruturas, como preconizaria mais tarde Durkheim. A idéia de Honneth é que nos conflitos sociais o indivíduo não busca exatamente a autopreservação ou o aumento do poder – como propunham Maquiavel e Hobbes – mas os indivíduos buscariam um reconhecimento de sua individualidade. Para Honneth, uma luta só pode ser social a partir do momento em que ela se generaliza para além das intenções individuais, tornando-se base para um movimento coletivo.

Essa constituição da moral segue um processo definido por etapas, num caráter eminentemente evolucionista. Existiriam três esferas nesse desenvolvimento do conflito do qual emana o social ou a eticidade: a esfera do amor, a esfera do direito e a esfera da solidariedade. Na esfera do amor o princípio do reconhecimento seria o da necessidade proveniente de uma natureza carencial e efetiva dos indivíduos, os quais aos serem concebidos teriam seu reconhecimento a partir das relações primárias como o amor dos pais e as amizades. Nesta etapa, os indivíduos seriam reconhecidos pela dedicação emotiva dos outros sujeitos da interação e as formas de desrespeito seriam os maus tratos e a violação, ameaçando a integridade física dos indivíduos. Seguindo o modelo de Hegel, Honneth entende que a primeira forma de reconhecimento com que os humanos se deparam é o amor, que por si próprio não pode levar a formação de conflitos sociais. Isso porque as relações amorosas mesmo que tenham uma dimensão de luta por reconhecimento, elas são uma luta restrita aos círculos de relações primárias, não se tornando assunto de interesse público. Por sua vez, as formas de reconhecimento do direito e da auto-estima social já representam um quadro moral de conflitos sociais. Na esfera do direito o princípio de reconhecimento seria a igualdade legal, garantida pelas leis, proveniente de uma imputabilidade moral dos indivíduos. Neste nível do desenvolvimento os indivíduos seriam reconhecidos pelo respeito cognitivo garantidos por relações jurídicas, ou seja, por direitos garantidos legalmente. O conflito seria proveniente da privação de direitos e pela exclusão ameaçando a integridade social dos indivíduos. Por fim, na etapa da solidariedade o princípio de reconhecimento seria as contribuições sociais provenientes da comunidade de valores que fundamentariam a sociedade. Nesta esfera, os indivíduos seriam reconhecidos pela estima social, e o conflito proveria da degradação e da ofensa pessoal, que ameaçariam a dignidade e a honra individuais.

Está, portanto, inscrita na experiência do amor a possibilidade da autoconfiança, na experiência do reconhecimento jurídico o alto-respeito e na experiência da solidariedade a auto-estima. A auto-realização individual pode ser alcançada na medida em que ocorre a auto-realização positiva a ser dada nesse processo de reconhecimento. Segundo expôs Honneth, a própria concepção dos indivíduos, etapa após etapa, definida por Hegel engendraria um processo de evolução da concepção dos indivíduos, que na esfera do amor reconhecer-se-iam como indivíduos em si, na esfera do direito reconhecer-se-iam pessoas e na esfera da solidariedade reconhecer-se-iam sujeitos. Os indivíduos fundar-se-iam nas carências concretas, as pessoas fundar-se-iam na autonomia formal e os sujeitos fundar-se-iam na particularidade individual.

Segundo Honneth existiriam diversas formas de reconhecimento recíproco, que devem distinguir-se umas das outras segundo o grau de autonomia possibilitado ao sujeito em cada caso. Toda a luta por reconhecimento começa a partir da experiência do desrespeito, pois esta se torna fonte emotiva e cognitiva de resistência social e de levantes coletivos. A coletividade começa a enxergar as causas sociais que levaram a situação de desrespeito individual, gerando a resistência coletiva. Essa comunidade será então capaz de um engajamento político numa tentativa de sair de uma situação de rebaixamento tolerado para uma auto-relação nova e positiva.

Embora eu não seja um fã de trazer para a sociologia estas concepções mais filosóficas como a análise de Hegel exposta por Honneth, eu considero estas leituras muito interessantes. Tais leituras nos fazem pensar em processos altamente complexos e que permitem exercitar nossa capacidade de compreensão teórica. A concepção Hegeliana permite se pensar a constituição dos indivíduos numa formulação dialética fundada sobre uma tensão proveniente do conflito que evolui rumo a uma idealização de indivíduo que só se realiza enquanto social. E esse conflito é também eminentemente social. As três etapas dessa constituição do self formuladas por Hegel em Jena demonstram um desenvolvimento do reconhecimento dos indivíduos como indivíduos ao passo em que se complexifica a relação dos indivíduos com o social. No modelo Hegeliano se entende que a luta por reconhecimento encaminha os indivíduos a uma entidade entendida como “individuo” que é cada vez mais indivíduo quanto mais atrelada ao social. Hegel implementa uma natureza social evolutiva ao indivíduo que é mais indivíduo quanto mais o social evolui. E é esse processo de constituição do social e do individual ao mesmo tempo e interdependentemente que encanta Honneth. E que também nos encanta neste tipo de literatura.

Comentários feitos com base em:
HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento. A gramática social dos conflitos sociais. Tradução: Luiz Repa. São Paulo: Editora 34, 2003. 1ª Edição brasileira. Publicação do original em 1992. 296p. Parte I – Presentificação histórica: a idéia original de Hegel (p. 29-114).