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domingo, 25 de julho de 2010

Sigmund Freud: indivíduo e civilização

Na abordagem psicanalítica fundada por Sigmund Freud, o indivíduo se constitui como um ente à parte do social e que compõe o social. Freud refere-se aos aspectos que compõem um estado instintivo humano e que acabam por se tornar inibido em pró da convivência comunitária. A inibição destes aspectos, que são instintivos, consiste numa privação de características que são inatas aos homens, e, esta própria privação, acaba por consistir em determinados descontentamentos. Neste sentido, os homens em civilização – ou civilizados – demonstram-se descontentes na busca de sua felicidade, pois seus instintos não são prontamente atendidos em sociedade. No seu O mal-estar da civilização, Freud elabora uma discussão filosófico-social a partir de sua teoria psicanalítica. O autor desenvolve a idéia de que, em sociedade, não há avanço sem perdas. A idéia central que desenvolve nesta obra é a de que a civilização é inimiga da satisfação dos instintos. A sociedade modifica a natureza individual, constitui o homem como membro da comunidade, tornando-o indivíduo no social. Essa civilização exige sacrifícios, entre eles o da satisfação sexual e o da agressão. Tais sacrifícios são fontes de sofrimento, que criam dificuldades de relacionamentos, com o meio ambiente e a sociedade. Consiste como um paradoxo humano a idéia de que por ter criado uma sociedade civilizada, o homem precisou reprimir seus instintos violentos. Para Freud, esses impulsos que não podem ser satisfeitos acabam produzindo neuroses e infelicidade. Mas deve-se ter claro que para o autor a memória tem papel central. Tudo, então, seria armazenado na mente, de modo que não há um esquecimento dos impulsos, mas apenas repressão. Por segurança os homens são capazes de se submeterem à organização social. Em contrapartida, precisam abdicar da gratificação indiscriminada produzida pela agressividade que lhes é própria. “Se a civilização impõe sacrifícios tão grandes, não apenas à sexualidade do homem, mas também à sua agressividade, podemos compreender melhor porque lhe é difícil ser feliz nessa civilização. Na realidade, o homem primitivo se achava em situação melhor, sem conhecer restrições de instintos. Em contrapartida, suas perspectivas de desfrutar dessa felicidade, por qualquer período de tempo, eram muito tênues. O homem civilizado trocou uma parcela de suas possibilidades de felicidade por uma parcela de segurança. Não devemos esquecer, contudo, que na família primeva apenas o chefe desfrutava da liberdade instintiva; o resto vivia em opressão servil. Naquele período primitivo da civilização, o contraste entre uma minoria que gozava das vantagens da civilização e uma minoria privada dessas vantagens era, portanto, levado a seus extremos. Quanto aos povos primitivos que ainda hoje existem, pesquisas cuidadosas mostraram que sua vida instintiva não é, de maneira alguma, passível de ser invejada por causa de sua liberdade. Está sujeita a restrições de outra espécie, talvez mais severas do que aquelas que dizem respeito ao homem moderno” (p. 169-170). Essas renúncias costumam ser impostas em parte pela autoridade externa. E em parte pela ação da autoridade externa introjetada no sujeito, o dito superego, perpetuação da figura do pai e dos seus sucedâneos no mundo adulto. Com cada sacrifício pulsional, a culpa aumenta, em vez de diminuir. Este seria o descontentamento dos indivíduos, o seu mal-estar (parafraseando o título da obra): a frustração e a culpa. O ressentimento contra a civilização é uma conseqüência lógica desse mal-estar. E porque é tão difícil para o homem ser feliz, se pergunta Freud? Por que a civilização gera descontentes? Porque os homens civilizados estão privados da satisfação de parte de sua personalidade, de parte de sua natureza, fundada nos instintos. A idéia de restrição calcada por Freud à civilização toma evidência fatalistica. “A liberdade do indivíduo não constitui um dom da civilização. (...) O desenvolvimento da civilização impõe restrições a ela, e a justiça exige que ninguém fuja a essas restrições”. (p. 155-156). Ainda afirma o autor que “... a civilização é construída sobre uma renúncia ao instinto, o quanto ela pressupõe exatamente a não-satisfação de instintos poderosos. Essa ‘frustração cultural’ domina o grande campo dos relacionamentos sociais entre os seres humanos... é a causa da hostilidade contra a qual todas as civilizações têm de lutar... como pode ser possível privar de satisfação um instinto... se a perda não for economicamente compensada, pode-se ficar certo de que sérios distúrbios decorrerão disso.” (p. 157). A civilização depende de relacionamento entre um considerável número de indivíduos. Ela visa a unir entre si os membros da comunidade também de maneira libidinal e, para tanto, emprega todos os meios, favorece todos os caminhos pelos quais as identificações fortes possam ser estabelecidas entre os membros da comunidade e, na mais ampla escala, convoca a libido inibida em sua finalidade, de modo a fortalecer o vínculo comunal através das relações de amizade. Para que esses objetivos sejam realizados, faz-se inevitável uma restrição à vida sexual. A pista pode ser fornecida por exigência ideal da sociedade civilizada, tal como relata Freud: ‘Amarás a teu próximo como a ti mesmo.’ Meu amor é valorizado por todos os meus como um sinal de minha preferência por eles, e seria injusto para com eles, colocar um estranho no mesmo plano em que eles estão. (164-165). Os homens não são criaturas gentis que desejam ser amadas e que, no máximo, podem defender-se quando atacadas; pelo contrário, são criaturas entre cujos dotes instintivos deve-se levar em conta uma poderosa quota de agressividade. Em resultado disso, o seu próximo é, para eles, não apenas um ajudante potencial ou um objeto sexual, mas também alguém que os tenta a satisfazer sobre ele a sua agressividade, a explorar sua capacidade de trabalho sem compensação, utilizá-lo sexualmente sem o seu consentimento, apoderar-se de suas posses, humilhá-lo, causar-lhe sofrimento, torturá-lo e matá-lo. (O homem é o lobo do homem) Quem, em face de toda sua experiência da vida e da história, terá a coragem de discutir essa asserção? Via de regra, essa cruel agressividade espera por alguma provocação, ou se coloca a serviço de algum outro intuito, cujo objetivo também poderia ter sido alcançado por medidas mais brandas. (p. 166-167). A existência da inclinação para a agressão, que podemos detectar em nós mesmos e supor com justiça que ela está presente nos outros, constitui o fator que perturba nossos relacionamentos com o nosso próximo e força a civilização a um tão elevado dispêndio [de energia]. Em conseqüência dessa mútua hostilidade primária dos seres humanos, a sociedade civilizada se vê permanente ameaçada de desintegração. O interesse pelo trabalho em comum não a manteria unida; as paixões instintivas são mais fortes que os interesses razoáveis. A civilização tem de utilizar esforços supremos a fim de estabelecer limites para os instintos agressivos do homem e manter suas manifestações sob o controle por formações psíquicas reativas. Daí, portanto, o emprego de métodos destinados a incitar as pessoas a identificação e relacionamentos amorosos inibidos em sua finalidade, daí a restrição à vida sexual e daí, também, o mandamento ideal de amar ao próximo como a si mesmo, mandamento que é realmente justificado pelo fato de nada mais ir tão fortemente contra a natureza original do homem. A despeito de todos os esforços, esses empenhos da civilização até hoje não conseguiram muito. Espera-se impedir os excessos mais grosseiros da violência brutal por si mesma, supondo-se o direito de usar a violência contra os criminosos; no entanto, a lei não é capaz de deitar a mão sobre as manifestações mais cautelosas e refinadas da agressividade humana. Chega a hora em que cada um de nós tem de abandonar, como sendo ilusões, as esperanças que, na juventude, depositou em seus semelhantes, e aprende quanta dificuldade e sofrimento foram acrescentados à sua vida pela má vontade deles. Ao mesmo tempo, seria injusto censurar a civilização por tentar eliminar da atividade humana a luta e a competição. Elas são indubitavelmente indispensáveis. (p. 167-168). Não é fácil aos homens abandonar a satisfação dessa inclinação para a agressão. Sem ela, eles não se sentem confortáveis. Se trata de uma satisfação conveniente e relativamente inócua da inclinação para a agressão, através da qual a coesão entre os membros da comunidade é tornada mais fácil. (p.169). Freud faz referência que a civilização resiste a qualquer tentativa de reforma em pró da satisfação de instintos. Todavia, deixa aberta a idéia de que a psicoterapia pode ajudar nesse processo. “Quando, com toda justiça, consideramos falho o presente estado de nossa civilização; quando, com crítica impiedosa, tentamos pôr à mostra as raízes de sua imperfeição, estamos indubitavelmente exercendo um direito justo, e não nos mostrando inimigos da civilização. Podemos esperar efetuar, gradativamente, em nossa civilização alterações tais, que satisfaçam melhor nossas necessidades e escapam a nossas críticas. Mas talvez possamos também nos familiarizar com a idéia de existirem dificuldades, ligadas à natureza da civilização, que não se submeterão a qualquer tentativa de reforma”. (p. 170). Isso indica que em Freud se encontra um modelo de sistema filosófico em que a psicologia é integrada às ciências sociais, o que consiste num certo desafio à sociedade. Nesta obra, Freud parece acreditar que o destino humano poderia melhorar através de uma análise universal.

Comentário analítico com base no texto:
FREUD, Sigmund. Mal-Estar da civilização. Rio de Janeiro: Abril, 1978. Coleção “Os pensadores”. (pp. 133-194). Original de 1929, 1930.

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