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sábado, 14 de agosto de 2010

Revisão da tradição socialista do pensamento

André Gorz, embora tenha nascido em Viena, Áustria, é conhecido como um sociólogo francês porque assumiu em 1940 esta nacionalidade depois de sua família – de origem judaica – ter sido expulsa da terra natal durante o regime nazista. Conhecedor e adepto, mas critico, da teoria marxista, desde os anos 50, quando se aproximou do existencialismo, Gorz questionava o papel do proletariado como classe revolucionária, considerando que no século XX, nada diferenciaria o proletariado das demais classes. Considerava que o nível de vida dos trabalhadores apresentava substanciais melhoras com o estado de bem estar dos países desenvolvidos, e a diminuição da miséria propiciaria o crescente processo de “aburguesamento das massas”, diminuindo a intenção revolucionária do proletariado.

Em 1980, escreveu Adeus ao proletariado, seu livro mais conhecido e que teve grande repercussão na Europa, mas que mereceu, na França, o repúdio da Confederação Francesa Democrática do Trabalho, na qual Gorz atuava. Na Alemanha, pelo contrário, tal livro foi recebido com grande interesse pelo movimento operário, o que proporcionou a reconciliação de Gorz com este país. No livro, Gorz realiza um tratamento sistemático do questionamento da sociedade centrada no trabalho, a partir da identificação de tendências de redução do emprego industrial nas sociedades capitalistas avançadas, de ampliação de atividades em serviços, de diminuição da jornada de trabalho e de aumento do desemprego e sua manutenção em patamar elevado contrariamente ao “pleno emprego” de décadas anteriores. No contexto dessas mudanças, Gorz afirma que a teoria marxista não teria mais propostas a oferecer à construção de uma sociedade do futuro, o que evidenciaria seu anacronismo. Adeus ao proletariado expõe os mais importantes aspectos da concepção do autor, complementados em Metamorfoses do trabalho, demanda do sentido (1988), os quais estão presentes em todos os livros subseqüentes do autor, inclusive o que trataremos nesta resenha, Misérias do Presente, Riqueza do Possível (1997).

A obra de Gorz pode ser considerada como uma revisão crítica da tradição socialista, mostrando a necessidade de se reconsiderar a utopia e atualizar as ideologias emancipatórias. O autor assume uma combinação da teoria social da ação de cunho marxista com uma visão fenomenológica-existencialista do sujeito, o que se deve a sua ligação com Sartre. A contribuição principal de Gorz consiste na descentralização e na reconsideração da idéia de trabalho como mediação central da interação social e da relação entre natureza e sociedade.

Em Misérias do Presente, Riqueza do Possível, Gorz explora as idéias da importância que o conhecimento (saber) assume na economia contemporânea e do desaparecimento do trabalho assalariado como base da identidade social. O autor retoma a tese de que o fim da centralidade do trabalho assalariado não seria algo a ser lamentado pelos trabalhadores, pois uma nova sociedade estaria surgindo dos escombros da antiga. Gorz entende que as transformações sociais e do trabalho poderiam favorecer uma “libertação da alienação do trabalho” da era fordista e potencializariam condições para o surgimento de atividades “auto-organizadas”, sendo necessário que o trabalho perca definitivamente seu lugar central na vida das pessoas, para que estas busquem novas formas de expressão identitária.

No Capítulo sobre os Últimos avatares do trabalho, Gorz explora essas questões a partir da crise do modelo fordista e da emergência do modelo toyotista e das novas formas de trabalho assalariado (emprego) e as novas formas de “apropriação pelo trabalho” implementadas a partir desta crise. O autor mostra como a sociedade salarial se metamorfoseia inclinando-se para uma sociedade onde todos seriam precários. Ao tratar sobre o Pós- fordismo, faz uma caracterização do modelo pós-fordista, que se constituiu a partir da crise do fordismo, examinando de forma didática as diferenciações entre fordismo e pós-fordismo. O paradigma da organização vê-se substituído por aquele da rede de fluxos inter-conectados (...) No lugar de um sistema hetero-organizado centralmente, tem-se um sistema auto-organizado descentrado. (...) (p. 41). Uma tal concepção abriria ao poder operário espaços sem precedentes, anunciando uma possível liberação, ao mesmo tempo no e do trabalho? Ou significa a sujeição máxima dos trabalhadores (...)? (p.41)

A Materialização do modelo pós-fordista (toyotista) é exemplificada através do caso da Fábrica da Volvo, em Uddevalla, onde os trabalhadores seriam considerados como sujeitos reais da organização do trabalho. Grupos de trabalho, sistema de prêmio para montar um carro inteiro, rotatividade técnica e flexibilidade-funcional: o grupo funciona mesmo sem um dos membros, negociação de folgas entre o grupo, “árbitro” ou chefe da equipe, cargo ocupado alternadamente por cada membro do grupo, sindicato da empresa. Emprego de mão de obra jovem, bem formada, motivada.

Gorz aborda a questão da sujeição a partir de seu exame do toyotismo. Neste modelo, a produção enxuta tinha princípios próprios. Era preciso ultrapassar as relações de produção capitalistas tradicionais. Empregar apenas trabalhadores jovens, sem passado sindical, com contrato de trabalho de total comprometimento, sob ameaça de serem dispensados se o não cumprissem (...) Só empregam operários despojados de sua identidade de classe. (p. 47). Cultura da empresa como refúgio da insegurança. Cooptação do empregado. Toyotismo substitui as relações sociais modernas por pré-modernas. A empresa primeiro compra a pessoa e sua dedicação e só depois devolve sua capacidade de trabalho abstrata (p. 49).

Para Gorz, quanto mais se amplia a autonomia, mais deveria radicalizar-se a recusa da heteronomia (p. 50). A autonomia no trabalho é irrelevante se não for acompanhada de uma autonomia cultural, moral e política (p. 52). No tempo do general intellect (...) todos e todas são ao mesmo tempo trabalhadores potenciais e desempregados em potência (p. 53). Autônomo, soberano, mas limitado e assujeitado: o que produzem não é um resultado objetivado, destacável de sua pessoa, mas a mobilização de recursos próprios a ela mesma: seus talentos (p. 54). Vender toda a sua pessoa, saber vender-se, é a própria essência da prostituição. Gorz explora a idéia de que a superação da subordinação do trabalho da esfera heterônoma para a autônoma constituiria as condições concretas para a conversão do trabalho em uma atividade autônoma. Isso implica a coexistência de dois mundos diferentes – o da heteronomia e o da autonomia – em que um engloba toda a exploração típica do modo de produção capitalista, enquanto o outro constrói a independência do indivíduo. A superação da centralidade do trabalho assalariado torna-se imperativo para que os indivíduos transponham a heteronomia do trabalho e construam um novo tipo de sociedade, calcada no princípio do “tempo livre”. Qual seria o ápice desta nova sociedade? Diante da crise da racionalidade econômica capitalista, seria potencializada ao indivíduo a exposição de sua individualidade através do “tempo livre”?

Comentários com base no texto:
GORZ, André. Misérias do Presente, Riqueza do Possível. Tradução: Ana Montoia. São Paulo: Anna Blume, 2004. 162p. Original de 1997. Introdução (p. 9-15) e Capítulo II – Últimos avatares do trabalho (p. 37-65).

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