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quinta-feira, 3 de junho de 2010

Propriedade de si

Robert Castel (França, 27 de março de 1933...) sustenta uma abordagem centrada na análise das condições sociais objetivas que dotariam os homens da propriedade de si. A análise genealógica dessas condições o aproxima muito da concepção durkheimiana, relativa à anterioridade do social sobre o individual. A preocupação do autor é a de analisar as condições de emergência do sujeito e não especificamente trabalhar a emergência do sujeito. “Um indivíduo não existe em substância, e para existir como indivíduo é necessário ter suportes, e, portanto devemos nos interrogar sobre o que há “detrás” do indivíduo que o permita existir como tal (p. 12). As condições sociais, ou suportes, a que se refere Castel, são sempre direcionadas à perspectiva da segurança e proteção social. O autor entende que apenas um indivíduo assegurado e protegido socialmente poderia desenvolver a propriedade de si, pois este indivíduo não dependeria de outros indivíduos. Ou seja, ser indivíduo positivamente seria estar no seio de uma sociedade, e ser parte dela, e por ser parte dela ser protegido dos acasos da existência. O que se subentende, portanto, é que o indivíduo liberta-se da dependência de outros indivíduos, não sendo mais propriedade de outros indivíduos, mas passa a legitimar a coerção da sociedade, tornando-se proprietários de si através de seu trabalho. Na sociedade, o indivíduo teria seus direitos garantidos, tornar-se-ia um cidadão. Desta maneira, o indivíduo passaria a depender da capacidade do Estado de garantir certas condições, e por isso o social o tornaria um indivíduo. A idéia é a de que os suportes necessários para existir e ser reconhecido como indivíduo só poderiam ser obtidos pela sociedade. Castel entende que na modernidade ocorreu uma separação entre propriedade e trabalho, o que implicaria em pensar numa sociedade de proprietários e não-proprietários. Neste sentido, identifica que, primeiro, a propriedade privada, como enunciou Locke, poderia tornar o indivíduo proprietário de si. Os trabalhadores, devido à condição de não-proprietários, não gozavam de uma igualdade de fato, pois estavam despossuídos de si mesmos, pertencendo ao patrão. Não proprietários, nada poderiam ser. Com a falta da propriedade privada para um grande número de pessoas, a propriedade social representou uma inovação que permitiu a reabilitação dos não-proprietários para ascender à propriedade de si, pois a propriedade social outorgaria a seguridade e o reconhecimento pelo trabalho na condição de assalariado. Assim, as relações de trabalho foram estruturadas na sociedade salarial em torno de instituições do Estado. O trabalho assalariado permitiria o acesso aos suportes sociais a ele associados favorecendo a integração e a coesão social. Na sociedade salarial se poderia encontrar uma distribuição da propriedade social em que seria permitido aos indivíduos o exercício de fato de seus direitos de cidadão. Neste sentido, a propriedade social seria análoga da propriedade privada, ou seja, uma propriedade que gera segurança e proteção social. Entende o autor que “Existir positivamente como indivíduo é ter a capacidade de desenvolver estratégias pessoais, dispor de uma certa liberdade de escolha na condição de sua própria vida porque não se encontra na dependência de outro” (p. 26). A propriedade de si dependeria da possibilidade de apropriar-se do próprio corpo, apropriar-se do tempo e pensar o próprio destino. Eu me pergunto até que ponto isso é verdadeiro no âmbito de uma sociedade salarial dos anos 60 ao se considera a maior parte das categorias profissionais. Tome-se, por exemplo, o caso dos carvoeiros na Inglaterra. Como ter estratégias pessoais, liberdade de escolha, pensar o próprio destino passando-se 40 anos da vida no interior de um buraco, e sendo um indivíduo embrutecido, mas protegido socialmente? Parece que o indivíduo pode fazer escolhas dentro daquilo para o qual ele é formatado a ser. E, nesta perspectiva, como ficaria o caso da maior parte das mulheres, já que o pleno emprego foi primordialmente masculino? Castel entende que a problemática contemporânea seria centrada na retirada dos suportes sociais em razão da desregulamentação das relações de trabalho, ou seja, ao desmantelamento do sistema de proteções ligado ao emprego e à sociedade salarial. Segundo o autor, a deterioração da proteção faz emergir o indivíduo por carência os quais seriam condenados a levar sua individualidade como um peso. Esse fato é recorrente, muitas pessoas estão desligadas das proteções sociais. O problema não é apenas a passagem para uma economia de acumulação flexível, mas também o próprio excesso de proteção daqueles que há têm. Entendo que se poderia considerar, além das condições materiais, certas condições imateriais como suportes sociais, tais como educação, formação, competências pessoais, comunidades, relações pessoais, redes sociais profissionais, familiares ou de amizade. Por serem imateriais, entendo que seria suportes inalienáveis, suportes que não poderiam ser suprimidos. Concordo com o autor que é a sociedade que permite a formação do indivíduo, mas não concordo que seja uma sociedade salarial aos moldes europeus que garanta a condição de ser indivíduo.
Como construir uma sociedade de indivíduos sem criar indivíduos cada vez mais individualistas? Para Robert Castel essa é uma questão fundamental, embora muito difícil de ser respondida. Para ele “a tendência atual é que as pessoas se considerem membros de uma sociedade de indivíduos, ou seja, de uma sociedade individualista, pois o indivíduo é de fato um valor de referência para a modernidade, mas ele sozinho não consegue existir positivamente”. Segundo o sociólogo “o indivíduo isolado é, de alguma maneira, levado “pelas águas” e não chega a lugar algum.O importante é procurar articular esses valores individuais dentro de uma dimensão do coletivo no qual o indivíduo se encontra. Então, somente dentro desse coletivo ele pode se proteger e ser protegido da competição, constante e mesmo louca, que vem existindo. Dentro de um coletivo é que ele consegue conquistar realmente o seu lugar, a sua classe. Como articular a dimensão do indivíduo dentro de um coletivo é uma questão imensa e muitíssimo difícil.”


CASTEL, Robert; HAROCHE, Claudine. Propriedad privada, propriedad social, propriedad de si: conversaciones sobre la construcción del indivíduo. 1ª Ed. Rosario: Homo sapiens, 2003.

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