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quinta-feira, 21 de outubro de 2010

HABERMAS: Desenvolvimento da Moral e Identidade do Eu

Na obra Para a reconstrução do materialismo histórico, Habermas esboça a tese de que seria possível estabelecer uma homologia entre o desenvolvimento individual e a evolução social para superar o paradigma dos modos de produção e revitalizar a teoria crítica. Habermas baseia-se numa lógica segundo a qual ocorrem mutações nas estruturas normativas (valores, idéias morais, normas), que dependem tanto dos processos histórico-culturais quanto dos processos de aprendizagem. Os processos de aprendizagem seriam respostas aos desafios impostos por processos histórico-culturais, produzindo formas de interação cada vez mais maduras. A teorização habermasiana, em oposição ao pessimismo de Weber (expansão da racionalidade instrumental) e Adorno (fim do sujeito), aborda tanto a evolução do saber técnico-organizativo, que ocorre no sistema, quanto a evolução do saber prático-moral, que ocorreria no mundo-da-vida.

Diferentes níveis de aprendizado, relacionados aos níveis de organização moral e política, não correspondem às novas formas de organização da produção material, e, sim ‘a graus de desenvolvimento da consciência moral que correspondem aos níveis de competência interativa’.

Enquanto Marx localizou os processos de aprendizagem evolutivamente relevantes na dimensão do pensamento objetivante, do saber técnico e organizado, do agir instrumental e estratégico – em suma, das forças produtivas –, emergiram nesse meio tempo boas razões para justificar a hipótese de que, também na divisão da convicção moral, do saber prático, do agir comunicativo e da regulamentação consensual dos conflitos de ação, têm lugar processos de aprendizagem que se traduzem em formas cada vez mais maduras de integração social, em novas relações de produção, que são as únicas a tornar possível, por sua vez, o emprego de novas forças produtivas. (p. 21)

A sugestão do autor é a de deslocar da produção (que está no nível material) para a interação (que está no nível ideal) – lingüisticamente mediada – a motivação humana para a busca da convivência social e da evolução da espécie. Habermas estabelece entre os processos de aprendizagem individual e social uma circularidade: os indivíduos só podem desenvolver competência interativa e lingüística dominando as estruturas de racionalidade que já se encontram presentes em seus grupos primários/secundários, assimilando as idéias morais e as estruturas de justiça e verdade; as sociedades, por sua vez, só podem ser modificadas através do aprendizado construtivo dos indivíduos socializados. Para Habermas, o processo evolutivo da sociedade não se apóia, como indicava Marx, na contradição dialética entre forças produtivas materiais e relações de produção. As forças produtivas desenvolvem-se e as formas de integração social amadurecem de acordo com o desenvolvimento dos sujeitos tanto no nível do saber e do agir técnico-estratégico (razão instrumental e estratégica) como no do saber e do agir prático, moral e comunicativo (razão comunicativa). Nessa abordagem, o processo evolutivo da sociedade dependeria do desenvolvimento das capacidades e competências dos indivíduos que a ela pertencem. Habermas sugere, portanto, uma análise reconstrutiva da lógica do desenvolvimento da sociedade para superar a filosofia da história marxiana: “abandona” o “paradigma da filosofia da consciência”, baseado na práxis produtiva e na classe social, que buscava potenciais de emancipação na esfera da produção, substituindo-o (ou complementando-o) pelo “paradigma da comunicação”, baseado no entendimento intersubjetivo, entre sujeitos capazes de falar e agir, buscando potenciais de emancipação na esfera da interação.

No capítulo Desenvolvimento da moral e identidade do Eu, o autor vai enfatizar o desenvolvimento individual numa perspectiva sociológica, ou seja, se distanciando do desenvolvimento natural do Eu e embarcando no desenvolvimento sócio-moral do Eu. “Os conceitos-base psicológicos e sociológicos podem se articular porque as perspectivas do Eu autônomo e da sociedade emancipada neles esboçadas se corrigem e se implicam reciprocamente” (p. 50-51). Para elaborar seu argumento neste sentido, parte de três tradições teóricas que buscaram compreender a formação do Eu: a psicologia analítica do Eu (Sullivan, Erickson), a psicologia cognoscitiva do conhecimento (Piaget, Kholberg) e o interacionismo simbólico (Mead, Blumer, Gofmann). Os elementos comuns sobre o desenvolvimento individual nestas tradições seriam:

Primeiro, a capacidade lingüística e de ação do sujeito adulto é o resultado de processos de amadurecimento e aprendizagem; Segundo, o processo de formação de sujeitos capazes de linguagem e de ação percorre uma série irreversível de estágios de desenvolvimento discretos e cada vez mais complexos – nenhum estágio pode ser saltado e cada estágio superior implica o precedente; Terceiro, o processo de formação se dá de forma descontínua e é marcado por crises. Ter experimentado a solução produtiva de uma crise é condição necessária para dominar crises subseqüentes; Quarto, o Eu adquire crescente “autonomia” (independência) nas relações com a realidade, com a estrutura simbólica não objetivada de uma sociedade parcialmente interiorizada e com a natureza interna dos carecimentos culturalmente interpretados; Quinto, a identidade do Eu indica a competência do sujeito capaz de linguagem e de ação para enfrentar exigências. A identidade é gerada pela socialização, ou seja, se processa a medida em que o sujeito – apropriando-se dos universos simbólicos – integra-se num sistema social, enquanto que, mais tarde, ela é garantida e desenvolvida pela individualização, ou seja, precisamente por uma crescente independência com relação aos sistemas sociais; Por último, um mecanismo relevante de aprendizagem é a transformação de estruturas externas em internas.

A organização autônoma do Eu não se instaura de forma regular, como um processo natural. O processo de construção do Eu se caracteriza pela descentração progressiva do próprio Eu e pela sua delimitação em face da objetividade da natureza externa e do mundo social. Em sua tese sobre o desenvolvimento individual, Habermas enfatiza o aspecto cognoscitivo da consciência moral, ou seja, a capacidade reflexiva e de juízo moral dos indivíduos. No desenvolvimento moral decorrem processos de aprendizagem que são possíveis devido ao amadurecimento de estruturas cognitivas, construídas na interação do sujeito com o meio, as quais são fortemente ligadas a processos motivacionais e afetivos, que estão na base das inter-relações pessoais. As experiências do indivíduo (vivência) no decorrer da sua vida, em interação com a realidade sócio-cultural, bem como as motivações e emoções, que também são parte integrante de suas experiências, são elementos determinantes na formação de estruturas cognitivas e combinações que as estruturas cognitivas possibilitam, que impulsionam ou retêm a passagem para um plano superior do desenvolvimento moral. O desenvolvimento do Eu ocorreria em quatro estágios: simbiótico (não há distinção entre o si e o mundo, quando desenvolve a reflexividade), egocêntrico (distinção entre o si e o mundo, quando desenvolve a abstração), sociocêtrico-objetivista (assumir o papel do outro, quando desenvolve a diferenciação), e universalista (participação em discursos teóricos e práticos, quando desenvolve a generalização).

O autor se baseará nos níveis de desenvolvimento moral formulados por Kholberg. Cada nível compõe-se de dois estágios, sendo o segundo estágio alcançado através de um processo de reflexão sobre o primeiro. Cada novo estágio pressupõe uma reorganização das estruturas presentes nos estágios inferiores, o que significa a transformação na percepção e no julgamento de ações e a aquisição de novas formas de resolver conflitos morais.

I Nível: pré-convencional: A criança é capaz de responder a regras culturais e as noções de bom e mau, justo e errado, mas interpretando tais noções nos termos das conseqüências físicas ou hedonísticas da ação. Estágio 1: Orientação por punição e obediência. As conseqüências físicas da ação determinam se ela é boa ou má, independente da opinião ou do valor humano de tais conseqüências. Estágio 2: Orientação instrumental-relativista. A ação justa consiste no que satisfaz instrumentalmente os próprios carecimentos e, ocasionalmente, os carecimentos dos outros. Segundo Habermas, neste nível as orientações são generalizadas pelo prazer/desprazer. Os atores não estão ainda inseridos no universo simbólico. Em relação à percepção dos componentes cognoscitivos das qualificações de papel, o ator deve entender e satisfazer expectativas singulares de comportamento por parte de um outro. Quanto à percepção das componentes motivacionais das qualificações gerais de papel o ator não distingue entre causalidade natural e causalidade segundo a liberdade. Outra dimensão é a percepção de uma componente das qualificações gerais de papel; neste nível, o ator percebe os atores e ações independentes do contexto.

II Nível: convencional: O fato de satisfazer as expectativas da família, do grupo ou da nação a que o indivíduo pertence é percebido como algo avaliável pelo seu direito intrínseco, prescindindo-se das conseqüências óbvias e imediatas. É uma aptidão não só de conformar-se as expectativas pessoais e a ordem social, mas de lealdade face a ela. Estágio 3: A concordância interpessoal ou a orientação “bom moço – moça bem comportada”. Um bom comportamento é o que agrada ou ajuda os outros e é por eles esperado e aprovado. Estágio 4: Orientação “lei e ordem”. Há uma orientação no sentido de autoridade dos papéis fixos e da manutenção da ordem social. O comportamento justo consiste em cumprir o próprio dever, em mostrar respeito pela própria autoridade e em manter a ordem social dada em nome dessa mesma ordem. Segundo Habermas, neste nível, a identidade é liberada da ligação com a manifestação corpórea dos atores. Na medida em que a criança incorpora as universalidades simbólicas de poucos papéis fundamentais de seu ambiente natural e, posteriormente, as normas de ação de grupos mais amplos; superpõe-se à identidade natural a identidade de papel sustentada por símbolos. Quanto à percepção dos componentes cognoscitivos das qualificações de papel, o ator deve ser capaz de entender e satisfazer expectativas singulares de comportamento reflexivo, ou deve ser capaz de desviar-se delas. Outra dimensão é a percepção de uma componente das qualificações gerais de papel, na qual o ator distingue entre as ações singulares e as normas, e entre os atores e portadores de papéis.

III Nível: pós convencional: Há um claro esforço no sentido de definir os valores e os princípios morais que tem validade e aplicação independentemente da autoridade dos grupos ou das pessoas que os sustentam e do fato de que o próprio indivíduo se identifique com tais grupos. Quanto à percepção das componentes motivacionais das qualificações gerais de papel, o ator deve saber distinguir entre ações obrigatórias e ações puramente desejadas. Estágio 5: A orientação legalista social-contratual. Geralmente com acentuações utilitárias. A justiça tende a ser definida em termos de direitos individuais. Há uma clara consciência no relativismo de valores e das opiniões pessoais e uma correspondente acentuação das regras de procedimento capazes de obter o consenso. Estágio 6: A orientação no sentido de princípios éticos universais. O que é justo é definido pela decisão tomada pela consciência, de acordo com princípios éticos autonomamente escolhidos, os quais apelam a compreensividade lógica, a universalidade e a consistência. Neste nível, os portadores de papéis se transformam em pessoas, que podem afirmar a própria identidade independentemente dos papéis concretos e de sistemas particulares de normas. O jovem já é capaz de distinguir entre as normas e os princípios segundo os quais é possível produzir normas, adquirindo a capacidade de julgar segundo princípios. A identidade do papel é substituída pela identidade do Eu. Quanto à percepção dos componentes cognoscitivos das qualificações de papel, o ator deve poder compreender e aplicar normas reflexivas. Quanto à percepção das componentes motivacionais das qualificações gerais de papel o ator deve distinguir entre heteronomia e autonomia, ou seja, perceber a diferença entre normas herdadas e normas justificadas por princípios. Neste nível as normas particulares devem ser tematizadas sob o angulo da sua capacidade de ser generalizadas, de modo que se torne possível distinguir entre normas particulares e gerais. Os atores são compreendidos como sujeitos individualizados que organizam biografias respectivamente inconfundíveis.

Transição entre os estágios, ruptura com o estágio anterior: No nível I só podem se tornar moralmente relevantes ações concretas e conseqüências de ações. Quando ocorre a reciprocidade incompleta atinge-se o estágio 1, na reciprocidade completa, o estágio 2. No nível II, quando se exige reciprocidade incompleta para expectativas de comportamento, atinge-se o estágio 3, a mesma exigência em face de sistemas de normas conduz ao estágio 4. Quando os carecimentos relevantes para a ação podem se manter fora do universo simbólico, as normas de ação lícitas e universalistas têm então o caráter de regras para a maximização do útil e de normas jurídicas universais temos o estágio 5. Quando os carecimentos são entendidos em sua interpretação cultural, mas atribuídos aos indivíduos como qualidades naturais, ocorre o estágio 6.

Ao assumir que a sucessão dos estágios da consciência moral representa teoricamente uma conexão estruturada pela lógica do desenvolvimento, Habermas menciona, primeiro, as estruturas do agir comunicativo que, introduzidas de acordo com o aprendizado da criança, servem de elemento indispensável para que se percebam os conflitos morais; em segundo lugar, trata da aquisição das competências cognitivas que possibilitam a realização de interações as quais, inicialmente incompletas, possam completar-se no processo de desenvolvimento; e por fim, assinala as condições comunicacionais que viabilizam a passagem do agir comunicativo para o estágio do discurso. Habermas identifica ainda um sétimo estágio, quando o princípio que justifica as normas não é mais o princípio monologicamente aplicável da capacidade de generalização das mesmas, mas o procedimento comunitariamente seguido para emprestar realização discursiva às pretensões de validade normativa.

O desenvolvimento do Eu é marcado por uma crescente autonomia em termos da independência com que o Eu resolve problemas. “Na identidade do Eu se expressa a relação paradoxal pela qual o Eu, como pessoa em geral, é igual a todas as outras pessoas, ao passo que – enquanto indivíduo – é diverso de todos os demais indivíduos” (p. 69). Para Habermas a identidade do Eu se efetiva na relação dialética do sujeito com o outro, ou seja, na intersubjetividade. “A identidade do Eu significa uma liberdade que (...) põe limites a si mesma” (p. 72). A noção de subjetividade ocorre no social: o homem só adquire consciência de si mesmo através do outro, ao desenvolver uma interação reflexiva através da linguagem, e em relação com e na construção de um mundo objetivo. Para Habermas, o Eu autônomo e competente refere-se ao sujeito que atingiu cognitivamente, o estágio pensamento hipotético-dedutivo (Piaget); lingüisticamente, o estágio da fala argumentativa; moralmente, o estágio pós-convencional (Köhlberg); e interativamente, a habilidade de assumir a perspectiva dos outros, examinando sua própria ação e interação à luz da reciprocidade de direitos e deveres (Mead).

Ao enfatizar o potencial emancipatório no mundo-da-vida, onde se dão os processos de interação, Habermas aponta para a formação do sujeito como um processo de aquisição crescente da competência interativa. A competência interativa é a capacidade dos indivíduos em resolver certas classes de problemas realmente relevantes, sejam esses de ordem empírico-analítica ou prático-moral: consistiria na capacidade de participar em sistemas de ação cada vez mais complexos, onde poderiam questionar as “pretensões de validade” embutidas na estrutura normativa e, através da argumentação, buscar o entendimento sobre a validade das normas. Os sujeitos dotados de competência interativa têm o compromisso de assumir, para dirimir eventuais conflitos, um ponto de vista capaz de efetivar consenso, “porém somente poderão se encontrar unidos em torno desse ponto de vista fundamental, se tal ponto de vista resultar das estruturas de interação possíveis”.

Os sujeitos dotados de competência interativa (tanto cognitiva, como lingüística, moral e motivacional) seriam capazes de reconstruir o universo simbólico através da busca argumentativa e processual da verdade; de questionar o sistema de normas que vigora na sociedade; de buscar novos princípios normativos para a ação individual e coletiva à base do melhor argumento e, conseqüentemente, de reorganizar sua sociedade em outras bases fundadas na interação que ocorre no mundo-da-vida. Essa lógica tomaria maior potencialidade no seio de um processo crescente de complexificação e de diferenciação funcional da ordem social (até o capitalismo tardio) uma vez que esse processo engendraria também uma progressiva capacidade de aprendizado e desenvolvimento da consciência moral. Frente a um mundo externo cada vez mais complexo e diferenciado, a competência interativa seria intensificada, segundo padrões cada vez mais diversos da realidade objetiva e gerando na interação abstrações cada vez mais abrangentes.

Comentários com base no texto:
HABERMAS, Jürgen. Para a reconstrução do materialismo histórico. Desenvolvimento da moral e identidade do eu (Texto original de 1974-6). São Paulo: Editora Brasiliense, 1990. (pp. 49-73).

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